Todos concordamos que um ecossistema empreendedor forte é motor de inovação e competitividade. No entanto, quando falamos de políticas públicas para start-ups, a discussão resume-se muitas vezes à disponibilização de financiamento, como se «atirar capital» fosse suficiente para transformar boas ideias em negócios sustentáveis.
O anúncio dos novos vouchers – “Deep Tech”, “Go to EIC Accelerator” e “Start from Knowledge” – pode ter sido um sinal de que Portugal despertou para a economia do séc. XXI. Mas entre o entusiasmo e a realidade há um oceano de detalhes que pode tornar estes instrumentos em mais um “fogo de vista”, e o foco destas medidas é uma luz que só faz sentido se o ecossistema souber navegar além do seu alcance.
Sendo um avanço face a mecanismos mais genéricos do passado, agora direcionados a empresas deep tech com ambição internacional, evita-se a pulverização de recursos em projetos de baixo impacto. Mas um farol sozinho não faz um porto seguro. A ligação entre start-ups a organismos de investigação tem mérito e é um caldo que alimentou gigantes como o MIT e a ETH. Mas em Portugal parece um casamento arranjado, sem velocidade nem a agilidade exigida pelas deep tech. Enquanto uma start-up nos EUA transforma uma patente em protótipo em semanas e escala à velocidade de um caça F-16, aqui perdemos meses à espera da aprovação de uma comissão de ética.
A boa notícia é que, desta vez, o farol parece ter sido construído com o contributo de quem conhece o mar. Afinal, não é todos os dias que se financia colaborações entre start-ups e grandes empresas, processos de head hunting, apoio regulatório ao labirinto jurídico que sufoca muitas deep tech, serviços de I&D, consultoria para financiamento – ações relevantes para remover barreiras ao crescimento.
Mas pecam por pouco. Enquanto a UE avança com uma “overdose” regulatória, as start-ups enfrentam outro nível de bloqueios. É que o voucher pode pagar um protótipo ou apoio jurídico na proteção de Propriedade Intelectual, mas não acelera a aprovação de uma patente ou a validação de modelos de Inteligência Artificial em setores sensíveis. Pode conectar uma start-up a outros atores, mas não garante o compromisso efetivo do ecossistema.
E aqui esbarramos na ferida mais antiga: a burocracia. Programas como o QREN, Portugal 2020 e PRR deixaram marcas, com atrasos, projetos engavetados e um sentimento geral de que o Estado é um sócio lento e desconfiado.
Singapura criou sandboxes regulatórias para testar ideias fintech em tempo real. Portugal tem apenas duas Zonas Livres Tecnológicas (mobilidade e defesa) que cumprem um papel similar e a aprovação para novas demora anos. Além disso, ainda se travam batalhas homéricas para validar projetos nas universidades. Expandir as ZLTs a áreas como cibersegurança, saúde e energia verde permitiria testes mais ágeis e atrairia investimento.
Há ainda um elefante na sala: o papel do setor privado. Em Silicon Valley, Singapura ou Alemanha, o dinheiro público é só faísca – a chama vem de fundos de risco e Corporate Venture Capital. Apesar de alguns bons exemplos, em Portugal o setor privado ainda é espectador. Replicar modelos de coinvestimento criaria maior compromisso com o scale-up das ideias.
Depois temos o desafio da escala. Ligar os vouchers ao EIC Accelerator é inteligente, mas insuficiente. Há hubs internacionais que financiam start-ups e as conectam a clientes globais desde o primeiro dia. Portugal podia transformar estes vouchers num selo de qualidade e num «fast track» para outros apoios e acesso a grandes empresas, garantindo que os incentivos são verdadeiros trampolins.
Depois há a questão que ninguém quer mencionar: o êxodo de talentos. Portugal forma engenheiros de topo para depois vê-los partir para Zurique ou os EUA. E estes vales não substituem um ecossistema que retenha quem pensa em grande.
A solução passa por encararmos estes vouchers como um convite e não um fim: para que investidores apostem em quem os usa, para que o Governo agilize processos e para que as universidades troquem a rigidez pela urgência das start-ups.
No fim, o que está em jogo não é a qualidade das medidas (há progresso), mas a ambição que as move. Se queremos que as nossas empresas naveguem além do mercado europeu e sejam bem-sucedidas, é preciso uma revolução na forma como o Estado, universidades, reguladores, investidores e empresas colaboram. O farol está aceso, mas só chegaremos ao porto se todos navegarem na mesma direção.
Daniela Branco, Business Innovation and Ecosystem Manager
Fonte: Observador
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