Em 1947 morre Henry Ford, fundador da Ford Motor Company e também o primeiro empresário americano a aplicar a montagem em série, produzindo automóveis em massa em menos tempo e a um menor custo. Celebrizou uma frase interessante: “Qualidade significa fazer certo, quando ninguém está a ver”. Se me permitem a audácia, face a tantos desafios que o tecido empresarial enfrenta, gostaria de reformular: “Fazer bem significa fazer “o” certo, mesmo quando ninguém está a ver”. E é este o paralelismo que gostaria de partilhar com tanta especulação em torno do pacote omnibus para a sustentabilidade.
O primeiro pacote Omnibus para a sustentabilidade foi proposto pela Comissão Europeia em fevereiro de 2025 para simplificar e reduzir os requisitos para a elaboração de relatórios de sustentabilidade. Pese embora o objetivo destas reformas seja reduzir os encargos administrativos, suscitaram preocupações quanto à ambiguidade regulamentar e a possíveis retrocessos nas iniciativas de sustentabilidade.
Mas, voltemos um pouco atrás para compreender o contexto.
A fim de alcançar a neutralidade climática até 2050 e uma economia mais sustentável e circular, a Comissão Europeia emitiu inúmeras regulamentações relevantes no âmbito do Pacto Ecológico Europeu, das quais destacamos três:
- O desempenho ambiental, social e de governança de uma empresa deve ser relatado conforme a Diretiva de Relatórios de Sustentabilidade Corporativa (CSRD)
- A definição de um esquema de classificação concebido para tornar claro quais as atividades económicas, numa perspetiva ambiental, através do Regulamento Taxonomia verde da UE
- A procura pela promoção de práticas empresariais éticas e sustentáveis ao longo das cadeias de valor globais e das operações das empresas, enquadrado pela Diretiva relativa ao dever de diligência em matéria de sustentabilidade das empresas (CSDDD)
O principal objetivo da UE consistiu, assim, em criar condições equitativas para as iniciativas de sustentabilidade, em várias vertentes, abordando os efeitos das alterações climáticas e das questões sociais, oferecendo quadros claros e coerentes, comparáveis e transparentes, independentemente da atuação económica das entidades por si abrangidas.
Mas será a simplificação o bicho-papão?
A simplificação da taxonomia da UE, os programas de investimento, os ajustamentos das fronteiras do carbono e o dever de diligência em matéria de sustentabilidade fazem todos parte do pacote Omnibus! A Comissão Europeia estima que a simplificação proposta permitirá uma aplicação mais eficaz de regulamentação em matéria de sustentabilidade, reduzindo os encargos administrativos para as pequenas e médias empresas (PME) em cerca de 35% e, globalmente, em cerca de 25%.
Ao mesmo tempo que procura aumentar a competitividade das empresas da EU, através da redução dos encargos administrativos, a proposta atual continuará a permitir que as empresas não abrangidas pelo âmbito de aplicação da CSRD apresentem relatórios sobre questões de sustentabilidade, se assim o desejarem, através de normas voluntárias para empresas não abrangidas pela CSRD e relatórios voluntários da taxonomia da EU, para empresas abaixo de um determinado limiar.
No caso da CSDDD, uma maior harmonização e redefinição do envolvimento das partes interessadas e a clarificação – e melhor alinhamento com a CSRD – das obrigações relativas à adoção de planos de transição para a mitigação das alterações climáticas beneficiarão, em particular, as grandes empresas abrangidas pelo âmbito de aplicação.
No que respeita à taxonomia a proposta é, uma vez mais, simplificar. O quê? O modelo de relato, conduzindo a uma redução dos pontos de dados em quase 70%, introduzindo ainda um limiar de materialidade para tornar voluntária a divulgação do alinhamento para as empresas com menos de 10% de atividades elegíveis, introduzir a opção de divulgação parcial para promover o financiamento da transição, simplificar e tornar mais útil o rácio de ativos ecológicos utilizado pelos bancos, reduzir o âmbito da obrigatoriedade de comunicação de informações sobre as despesas operacionais e simplificar certos critérios “não prejudicar significativamente” (DNSH).
Embora a proposta provoque alterações críticas no âmbito dos compromissos iniciais, foram protegidas algumas componentes fundamentais, como a dupla materialidade, a obrigação de diligência e os temas centrais das necessidades de comunicação em matéria de sustentabilidade. Não obstante, suscita inúmeras preocupações, entre elas:
- Ausência de clareza administrativa;
- Consequências indesejadas, como a redução da transparência e potenciais ineficiências do mercado;
- Conflitos e retrocessos à medida que outras partes do mundo, como o Japão e a China, avançam para regulamentação de sustentabilidade mais rigorosas;
- O equilíbrio entre os objetivos de competitividade e sustentabilidade, que continua a ser um desafio complexo ao exigir uma análise cuidada dos benefícios económicos a curto prazo e dos impactos ambientais e sociais a longo prazo.
Na prática,…
Importa relembrar que toda a nossa economia e desenvolvimento está assente em recursos, nomeadamente na natureza. As nossas florestas, rios, oceanos e solos fornecem-nos os alimentos que consumimos, o ar que respiramos e a água com que regamos as nossas culturas e desenvolvemos todo o tipo de atividades. Também dependemos delas para inúmeros e inestimáveis outros bens e serviços como: saúde, felicidade e prosperidade.
Como todos os desafios que o tecido empresarial enfrenta, num mundo VUCA/BANI, desenvolver e implementar estratégias de sustentabilidade, práticas ESG e fazer “o” correto é muito mais que cumprir com a legislação. Enquanto líderes empresariais do futuro, não deveríamos esperar por legislação para fazermos “o” correto, mesmo quando ninguém está a ver. Essa deveria ser a prioridade para garantirmos a prosperidade e resiliência do nosso negócio.
Clientes, fornecedores, investidores e outras partes interessadas responsáveis não ficarão à espera de instruções que orientem as suas atividades e é muito provável que continuem a avançar com os seus esforços em prol de uma economia mais resiliente, próspera, justa e sustentável.
Lurdes Guerra, Senior Sustainability Consultant