Na casa da minha avó paterna, havia sempre um aroma inconfundível de brasas, azeite e roupa engomada. As suas mãos, enrugadas pelo tempo e pelo trabalho solitário de quem enviuvou cedo, moviam-se com uma precisão impressionante enquanto reparava roupa, fazia renda ou preparava refeições que alimentavam não apenas o corpo, mas também a alma de quem tinha a felicidade de as consumir.
Admirável era a correria diária de quem tinha que administrar os escassos recursos, como legumes cultivados ou ovos que eram trocados por sardinhas e outros alimentos na feira semanal na vila, além de artesanatos, como arranjos de roupa, rendas e trabalhos manuais elaborados, sejam eles adereços de casa, roupas, bainhas abertas ou outros trabalhos manuais que supriram as necessidades diárias de outros tempos, fruto de uma vida na aldeia que não tinha consciência da velocidade do tempo e da industrialização acelerada.
Nunca recebeu um cêntimo por este trabalho. À semelhança de tantas mulheres da sua geração, o seu contributo doméstico e familiar permaneceu invisível nas estatísticas económicas, apesar de ser fundamental para a sustentabilidade de toda a família.
Esta memória ressoa hoje com uma força surpreendente quando olho para os números que relatam a disparidade salarial entre homens e mulheres no nosso país. Não falamos apenas de números abstratos, mas de um reflexo da mesma invisibilidade do trabalho feminino que testemunhei na curta vida que privei com a minha avó.
Um problema que persiste em Portugal
Quando ouvimos falar de disparidade salarial, muitos pensam ser um problema do passado, mas a realidade dos dados diz-nos o contrário. Em Portugal, segundo o Barómetro das Diferenças Remuneratórias entre Mulheres e Homens, as mulheres ganham, em média, 12,5% menos do que os homens, representando uma diferença absoluta de 161,30€ mensais. Ainda mais surpreendente foi perceber que, após anos de redução progressiva, a disparidade salarial entre os géneros em Portugal voltou a crescer pela primeira vez em uma década, segundo o Barómetro de 2022 do Gabinete de Estratégia e Planeamento da Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego. A tendência de queda foi novamente observada em comparação com o ano de 2023.
Quando traduzimos estes números para a realidade quotidiana, percebemos que as mulheres portuguesas trabalham, efetivamente, aproximadamente 45 dias por ano sem receber, em comparação com os homens que desempenham as mesmas funções.
A disparidade salarial na Europa e no mundo
(In)Felizmente este não é um problema exclusivamente português. O Fórum Económico Mundial, no seu relatório Global Gender Gap 2025, estima que, ao ritmo atual, seriam necessários 134 anos para alcançar a paridade global entre géneros. O estudo do Fórum Económico Mundial reforça ainda que as mulheres ganham apenas 77 cêntimos por cada dólar pago aos homens. Embora algumas regiões tenham feito progressos significativos na redução do fosso, outras ficam para trás, com disparidades persistentes em áreas como a liderança política e a participação económica.
Quando olhamos para o mapa da disparidade salarial na Europa, Portugal situa-se próximo da média europeia, com 8,6%, um valor inferior aos 12% da média da União Europeia (valores relativos a 2023).
As raízes históricas e culturais da desigualdade de género
Ao analisarmos os números, devemos compreender as causas estruturais desta desigualdade e, da mesma forma, é crucial compreender que não se trata somente de empresas que decidem reduzir o pagamento das mulheres! Vejamos.
A falta de transparência nas políticas salariais, o recrutamento pouco imparcial e as políticas laborais pouco inclusivas ou familiarmente responsáveis são apontados como fatores que contribuem para esta realidade. Além disso, existe uma segregação profissional com base no género, com as mulheres a estarem sobre representadas em setores tradicionalmente menos valorizados e remunerados.
Outro fator determinante é a responsabilidade desproporcionada que as mulheres ainda assumem no cuidado dos filhos e outros familiares. Segundo estatísticas europeias, quase um terço das mulheres (28%) trabalha a tempo parcial, em comparação com apenas 8% dos homens. Esta interrupção nas carreiras prejudica não só o desenvolvimento profissional, como também a progressão salarial e, quiçá, o desenvolvimento da sociedade do futuro.
Seria um erro pensar que este é um problema que afeta apenas as mulheres. A disparidade salarial tem consequências profundas para a economia e para a sociedade como um todo, apresentando um efeito cumulativo que resulta na redução da capacidade de ganho de uma mulher ao longo da sua vida, impactando direta e indiretamente a sua “rede” de ação, seja ela pessoal ou profissional. Porquê? Porque afeta diretamente o seu poder de compra, a sua capacidade de poupança, a sua independência financeira, o bem-estar geral das famílias e agudiza a sua capacidade de crescimento económico, perpetuando o círculo vicioso de desigualdade social. Adicionalmente, importa referir que a dificuldade em reter talentos, em particular, femininos, a perda de produtividades e a promoção de uma cultura corporativa menos inclusiva, são alguns dos efeitos desta desigualdade que se vai fazendo sentir nas organizações.
Soluções práticas para reduzir a disparidade salarial
Apesar do cenário desafiador, há sinais de progresso e caminhos que podemos, juntos, seguir para promover a mudança. A UE quer reforçar a aplicação do princípio da igualdade de remuneração por trabalho igual entre homens e mulheres mediante novas regras em matéria de transparência salarial, através da aprovação da nova Diretiva Europeia sobre Transparência Salarial, com o objetivo de alcançar a equidade salarial entre homens e mulheres e reforçar a transparência de salários e a justiça, que terá início a 1 de junho de 2026.
A par, esta introdução procura promover um reforço da transparência de salários que pode trazer benefícios tanto para as empresas, como para os seus colaboradores e candidatos, consubstanciando-se como uma oportunidade para modernizar as suas práticas empresariais combater a desigualdade salarial e reforçar a reputação das empresas. Resultado desta nova dinâmica, 4.000 empresas portuguesas foram notificadas pela ACT (Autoridade para as Condições do Trabalho) por apresentarem um índice de disparidade salarial (GPG – Gender Pay GAP) entre homens e mulheres superior a 5%.
Em Portugal, também a Lei n.º 60/2018, de 21 de agosto, aprova medidas de promoção da igualdade remuneratória entre mulheres e homens por trabalho igual ou de igual valor, sendo possível alguma revisão, sem alterações, face à entrada da diretiva acima referida.
Independentemente do que o ambiente regulatório nacional e europeu possam “obrigar” a fazer e da sua organização ter ou não sido notificadas, as empresas devem assumir a oportunidade de terem um papel ativo e crucial na redução desta disparidade, através da implementação de análises de equidade salarial, programas de desenvolvimento profissional e políticas laborais mais inclusivas e familiarmente responsáveis.
Uma reflexão pessoal
Volto à imagem da minha avó paterna e de tantas outras mulheres que, como ela, dedicaram as suas vidas ao cuidado dos outros sem o devido reconhecimento. Quando falamos de disparidade salarial, não falamos apenas de números ou percentagens, falamos de vidas, de potencial desperdiçado e de injustiça estrutural que vai agudizando a disparidade e injustiça social. Relembro que, cada vez que uma mulher recebe menos pelo mesmo trabalho, não é apenas ela quem perde – perdemos todos enquanto sociedade! Perdemos inovação, perdemos talento, perdemos diversidade de pensamento e, acima de tudo, perdemos a oportunidade de construir uma sociedade verdadeiramente justa e equitativa.
A disparidade salarial não é um “problema das mulheres”, mas um desafio coletivo que exige uma resposta coletiva. Quando falamos em ESG ou sustentabilidade, falamos também de trabalhar a equidade salarial e o potencial humano (sejam homens ou mulheres). O que faremos juntos para garantir que as próximas gerações de mulheres não tenham de trabalhar praticamente 45 dias por ano sem remuneração? O futuro mais justo e equitativo começa hoje, com cada um de nós.
Lurdes Guerra, Senior Sustainability Consultant
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