Alterações Climáticas e Biodiversidade: um déjà vu de crises


“A terra inteira estava silenciosa, não mais o som do zumbido de insetos, nem o canto dos pássaros. Os campos estavam desolados, a vegetação enfraquecida, os animais desapareciam, e até o ar estava sem vida”, em Primavera Silenciosa de Rachel Carson.

A 27 de setembro de 1962, o livro “Primavera Silenciosa” de Rachel Carson, chegava às livrarias. O livro, conhecido pelo relato alarmante da dizimação da avifauna causada pelo uso de DDT (Dicloro-Difenil-Tricloroetano) nos Estados Unidos — um poderoso e nocivo inseticida — despertou a atenção pública e marcou a agenda política, o que culminou na proibição do produto químico dez anos depois.

Mais de seis décadas após a sua publicação, as preocupações de Carson permanecem relevantes à medida que a humanidade enfrenta grandes impactes sociais e ecológicos decorrentes das alterações climáticas e da perda de biodiversidade, resultantes das emissões de gases com efeito de estufa provocada pelo homem. Estaremos nós a sentir um déjà vu? Será esta a visão que queremos para o futuro? Importa relembrar que estas duas crises (ou crises gémeas) estão interligadas, com causas e efeitos comuns entre si. Assim, nunca foi tão necessário revisitar a mensagem subliminar de “Primavera Silenciosa”: a necessária revolução social.

O modelo económico tradicional, que prioriza o crescimento a qualquer custo, está em contradição com os limites ecológicos do planeta, levando a economia global a enfrentar desafios sem precedentes na interseção entre e finitude de recursos, o crescimento ilimitado e as elites tecnológicas. Este modelo linear, conhecido como “retroeconomia”, agudiza os impactes ambientais e sociais, resultando em maior degradação ecológica, num aumento da desigualdade, e perda de biodiversidade (que, relembrando os mais desatentos, suporta todo o sistema terrestre e a vida como a conhecemos). Ao mesmo tempo, a ascensão da era digital transformou radicalmente como a sociedade consome informação, muitas vezes superficial e enviesada, influenciando políticas e decisões empresariais.

O último relatório de riscos globais do World Economic Fórum continua a apontar para que os riscos ambientais e, em menor grau, os riscos tecnológicos dominem o panorama dos riscos globais a longo prazo.

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Apesar da complexa teia de riscos e desafios a que estamos sujeitos, surgem também oportunidades.

Continua a emergir com uma das tendências geopolíticas mais relevantes, que influenciará a sustentabilidade corporativa: o aumento da regulamentação em matéria ambiental e a transparência. A Diretiva de Finanças Sustentáveis e a Taxonomia Ambiental da União Europeia estabelecem novos critérios para investimentos alinhados com os objetivos ambientais e desta forma procuram reconfigurar o panorama do investimento e as práticas e valores que os sustentam. Desta forma, procura-se desacelerar a retroeconomia e gerir riscos crescentes associados às crises gémeas.

O futuro da economia não pode (e não deve) estar dissociado da preservação ambiental e da revolução digital. Para reverter o cenário atual, é essencial migrar para uma economia assente no capital natural, que aposte na regeneração e preservação dos ecossistemas, enquanto suporte vital da vida como a conhecemos. A par, é também importante apoiar a preservação da componente social local, gerando e fixando emprego, trazendo sentido de pertença e desenvolvimento.

A revolução digital permitirá simplificar a gestão de processos e procedimentos complexos que geram ineficiências, trazendo um alívio na burocracia do dia a dia. A miríade de regulamentações e orientações estratégicas que dão corpo ao Pacto Ecológico Europeu são exemplo disso mesmo, com um foco muito presente naquilo que é a promoção de uma saúde humana, ecossistémica e planetária interligada para um futuro habitável, financiando e apelando à digitalização da transição. E isso só é possível pela implementação de políticas transformadoras, com a tomada de ação corajosa, via instituições, governação e sistemas sociais interligados, desde a base local ao global.

Independentemente da crescente incerteza e da permanência num mundo VUCA/BANI, a liderança corporativa assume um papel de destaque na adoção de visões estratégicas, de longo prazo, que primem pela resiliência organizacional, através da integração da sustentabilidade na espinha dorsal do desenvolvimento económico de cada organização. Apenas líderes empresariais (e quiçá, políticos) empáticos, corajosos e disruptivos, poderão fazer a diferença para reverter uma visão indesejável, baseada em evidência científica e robustecida diariamente por inúmeros estudos e relatórios que comunicam o mesmo: os riscos são elevados e inegáveis, a inação é um dos nossos piores inimigos!

Então, o que esperamos?

Rachel Carson, Bióloga marinha. Escritora americana. Mulher. Expressou corajosamente a sua opinião, com um rigor científico blindado, apesar da oposição de representantes da indústria que sabiam que a verdade que ela relatava colocaria em risco as vendas dos seus produtos. A clarividência e a coragem de Carson para falar sobre as atividades humanas que destruíam — e ainda destroem — o mundo natural, conduziram a enormes progressos na comunidade ambiental, sobre a necessidade de todos sermos bons administradores da Terra.

Convido-vos a refletir. Será que podemos (e devemos) ser a Rachel Carson dos tempos modernos? Eu diria que sim.

Lurdes Guerra, Senior Sustainability Consultant


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